domingo, 7 de dezembro de 2008

A discutir metáfora se perde o coração

O homem observa, devagar, o rosto da mulher sentada. E a dúvida permanece: as mãos, enfim, as mãos… No resto, nada que indicie contra natura. De contra natura ele, o homem, etiquetava tudo o que não seguisse o trilho antigo das relações afectivas.
Nome?
Gabriela.
Gabriela quê?
Leu o livro?
O seu passaporte?
Jorge disse: personagem carece não.
Personagem!
Sim. E o senhor quem é? Faz pergunta de policial…
A senhora trabalha?
Senhora não, por favor!
A menina.
Menina é gostoso de ouvir, parece sorvete em tarde de Verão. Jorge disse para eu evitar metáfora, fugiu, me desculpe. Ele disse, a discutir metáfora se perde o coração.
Sim. E onde trabalha?
Trabalho não, Jorge é camarada!
Agora é a mulher a ler o homem, devagar. Terá trinta e poucos anos, dente sujo de tabaco, olhos claros, de ofídio diria, se fosse ela a falar e Jorge lhe levantasse o embargo de imagem literária. Encontra impaciência: por ser revistado com os olhos ou por se alongar o desfecho? Um caso como muitos outros. Ouviu histórias extraordinárias. Um marroquino em busca das palavras perdidas na cristandade. Era assim, Jorge perdoa a pobre imagem, arqueólogo de língua morta. Ele dizia procurar, no idioma nosso de hoje, remotos sons de antiga gente. Quem servia? O magro marroquino, com seus gestos limpos, disse diligenciar como emissário da memória – e, assim sendo, nada cobrava pelo ofício, porque, mesmo que o fizesse, receberia o soldo em moeda fora de circulação. Como ninguém vive de ar e do vento, enquanto pesquisava nas cidades, vilas e aldeias, vendia um ou outro tapete tendo em vista o frugal sustento, que dormir africano lugar enxuto, sob as estrelas, sempre acha. A dado momento, o homem desinteressou-se da bondade da história, e avisou o marroquino: quem exerce um ofício, seja ele o de vasculhar restos de língua, paga imposto. Fez expressão de espanto, o norte-africano.
Trabalho não. Sou turista, visito os lugares onde Jorge foi feliz: Viana, em Viana Jorge foi feliz.
A menina está no Porto.
Foi pelo anúncio que descobriu?
Pelo jornal assinalamos certo género de clandestinos.
Se equivoca, senhor. Prostituta não… E sou mulher, sempre meu corpo foi mulher.
“Travesti Cláudia, curta temporada. Activa/Passiva. Peito XXL. Meiguinha. Sem pressas”. Se isto não é prostituição, diga lá o que virá a ser?
Um isco, senhor. A Gisberta, lembra?, que os meninos maltrataram e deixaram lentamente morrer no fosso de prédio abandonado, a história dessa mulher tocou meu coração. Fui ao jornal, paguei anúncio. Sabe para quê? Queria ver o olhar de cliente de transexual: alguns deles transaram com Gisberta, quando Gisberta não era fétida melancolia. Pouca sorte, caiu na rede polícia desfardado.
Ouvi muitas histórias, mas a da Claúdia
Cláudia, não. Sou Gabriela.
Certa vez, um vendedor nómada marroquino disse-me ter pago os impostos ao Estado português com as últimas palavras que terá pronunciado D. Sebastião em Alcácer-Quibir. Que entre o povo mais recôndito e antigo, demorada pesquisa, foi juntando fragmentos e assim chegaria à derradeira fala do jovem rei, pouco antes de trespassado pela lança inimiga. Eu me comovi com o relato do homem.
Que heróicas palavras foram essas?
Não podia revelar, disse ele. Segredo de Estado. E quando tal mentira pouco fiável disse na minha cara, eu me descomovi e o mandei prender. A sua história, Gabriela, não me comove. Mas como poderei justificar ao meu superior, e o meu superior ao chefe dele, a detenção de personagem que se faz passar por travesti para olhar no fundo dos olhos antigos clientes de Gisberta?
Vem comigo? Jorge tinha um amigo em Viana: confeccionava doce, gosta de doce? Jorge me falou também de bolinhos de bacalhau, sabe o que é bolinho de bacalhau? Certa vez, me falou de um poeta dessa geografia, um tal Pedro Homem de Melo, conhece?
Não.
Uma tarde, o poeta se encontrou aqui no Porto, no café Ceuta, ainda existe?, um escritor e amigo do Alto Minho, assim disse Jorge, chamado Tomaz de Figueiredo. Era o tempo da vossa Ditadura, ouviu falar de Tomaz de Figueiredo?, e a dada passo o poeta informou o amigo de que iam levantar estátua a Salazar, de Salazar ouviu falar… Figueiredo, seu gosto ideológico fazia brando o ditador, disse: “Se a estátua for de merda, eu mesmo ofereço o bronze”. Jorge gargalhava toda a vez que contava a história. Me diga, por que despreza travesti?
Não o entendo, Gabriela.
Se deixe de subtilezas… Vamos a Viana. Como é mesmo o bolinho de bacalhau?


Árvore, 1 de Dezembro de 2008

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