Devastador o silêncio da árvore estendida na terra, acabada de abater. A morte, por instantes, faz-se de secretíssimos cheiros: das folhas que perderam leveza e equilíbrio, dos ramos feridos na queda abrupta, do apertado coração de seiva. Ou será a alma? A alma da árvore liberta do corpo cativo. E logo uma luz imprevista abraça o lugar antes habitado. Luz, crua, sem sombra: incapaz, contudo, de amortalhar a devastação. Vi claridade assim, suave e limpa,
É um freixo, desconheço-lhe a idade: na margem do rio todas as árvores crescem para além do tempo. Já a luz habita o lugar devoluto, o homem separa os ramos do tronco como se aparasse a devastação do silêncio. Cortei o freixo para tocar a metáfora com as mãos, sentir-lhe o odor? O homem divide o tronco em três partes. Ressequida a memória da seiva, hei-de levar a árvore à serração. Achará o silêncio forma de mesa: construída por mim, na sombra do alpendre, rente ao cheiro intenso das figueiras. Prendo a tábua no banco de carpinteiro, procuro-lhe o correr, limpo-a, limpo-a de devagar. O mesmo farei às pernas da mesa e às travessas: o movimento da plaina sempre no mesmo sentido, no mesmo correr, até ao limite dos braços, depois o corpo se cabisbaixa e a lâmina desliza mais além. Ofício de aplainar é como a arte de enxertia: cada golpe será único, exacto, sem recuo. Madeira alinhada e limpa. É tempo de adir as tábuas. Eis o freixo em forma de mesa, metáfora utilitária, onde vou pôr romãs, livros, tangerinas, açucenas, peixes do rio.
Na brancura da toalha a mancha de vinho. Quando eu desaparecer, outros irão dar uso à mesa, tosca, do nobre e rijo freixo. Talvez me engane. O seu destino será o silêncio do alpendre, tampo cheio de coisas inúteis. Ou virá o fogo.
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