sábado, 24 de janeiro de 2015

No meu bonito bairro

No meu bonito bairro, entre Barbès e La Villette, é honroso
viver. E por toda a parte poderia a felicidade ter lugar. O único
obstáculo é o tempo, o tempo de morrer. Antes da noite total,
dentro da noite furtiva, poderemos ver, teremos o tempo de ver,
de nos iluminarmos?
Paul Éluard
poemas políticos
trad. Carlos Grifo

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A FOME

*
Esta é a fome. Um animal
todo olho e caninos.
Nada o engana ou distrai.
Nunca se farta à mesa.
Não se contenta
com um almoço ou jantar.
Anuncia sempre sangue.
Ruge como leão, agarra como gibóia,
pensa como pessoa.

O exemplar que aqui se mostra
foi caçado na Índia (subúrbios de Bombaim)
todavia existe em estado mais ou menos selvagem
em muitas outras partes.

Não se aproxime.

Nicolás Guillén

O Grande Zoo, ed. Centelha, 1973
trad. Carlos Pereira

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A GRÉCIA À FRENTE


O povo grego não é um povo complacente
O fogo disparado sobre ele é-lhe vitória
Os mais pequenos entre eles são loucos
Por liberdade razão e sua força


Ao longo da grandeza humana têm mãos
Para oporem aos punhos pés contra as garras
À guerra opõem eles a mãe-justiça
E a necessidade os guia e os ensina


A Grécia é um país sem arroios para os ratos
Ali não tem a peste túmulos consagrados
Não faz medo viver não estende sombra a morte
Lutar pelo que é seu apaga o tempo-noite


Neste cume da terra no coração da luz
O povo todo unido abre uma porta imensa
Para a paz desarmada e é aí que sucumbem
Os bárbaros aí que secará seu sangue

Na aragem do mar flor da fraternidade.

Paul Éluard

poemas políticos,  ed. Presença
trad. Carlos Grifo

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Metro rural

*
viajar de metro galgando campos e azinhagas
a luz morna como a palma da mão
árvores fugindo na imobilidade verde
viajar assim enquanto escrevo a própria viagem
é como viver duas vezes o mesmo momento

domingo, 4 de janeiro de 2015

Elucidário Oblíquo

*

Águia

Se perde o i em voo, desfaz-se em chuva.

*
Gato

Uma intriga com bigode.

*


Senhores da Gramática, então admite-se
sobrecarregar batráquio saltador com til?!


Augusto Baptista

Elucidário Oblíquo
do Reino dos Bichos
ed. gatopardo, 2004

sábado, 3 de janeiro de 2015

Monólogo do velho trabalhador

*
Agora tomo o sol. Pero até agora
trabalhei cincoenta anos sin sosego.
Comín o pan suando dia a dia
nun labourar arreo.
Gastei o tempo co xornal dos sábados
pasóu a primavera, veu o inverno.
Dinlhe ao patrón a frol do meu esforzo
i a minha mocedade. Nada tenho.
O patrón está rico á minha conta,
eu, a súa, estou velho.
Bem pensado o patrón  todo mo debe.
Eu non lhe debo
nin xiquera iste sol que agora tomo.

Mentras o tomo, espero.

Celso Emilio Ferreiro

Autoescolha Poética
ed. Razão Actual, Porto 1972

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

[Invoca o fogo]

*
Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

Eugénio de Andrade

Branco no Branco
Contra a Obscuridade
ed. Fundação Eugénio de Andrade