domingo, 29 de junho de 2014

Verão




É um jardim claro, entre muros baixos,
de erva seca e de luz, que devagar coze
a sua terra. É uma luz que sugere o mar.
Respiras essa erva. Tocas os cabelos
e fazes brotar a recordação.


Vi tombar
muitos frutos doces na erva familiar,
com um baque. Assim te sobressaltas também
ao tremor do sangue. Moves a cabeça
como se em torno ocorresse um prodígio impalpável
e o prodígio és tu. Há um mesmo sabor
nos teus olhos e na cálida recordação.


Escutas.
As palavras que escutas tocam-te ao de leve.
Tens no rosto calmo um pensamento claro
que nos teus ombros imita a luz do mar.
Tens no rosto um silêncio que atinge o coração
opresso, e destila uma antiga pena
como o sumo dos frutos caídos nesse tempo.

Cesare Pavese

Trad. Rui Caeiro
O Vício Absurdo, &etc, 1990

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Mi corza



Em Avila, mis ojos...
Siglo xv



Mi corza, buen amigo,
mi corza blanca.
Los lobos la mataron
al pie del agua.
Los lobos, buen amigo,
que huyeron por el río.
Los lobos la mataron
dentro del agua.

Rafael Alberti
Antologia Poetica
Alianza editoral

segunda-feira, 23 de junho de 2014

QUANDO NA MINHA TERRA AS FLORES SE ANUNCIAM

Ao António Ramos Rosa


Quando na minha terra as flores se anunciam
e as belas raparigas acordam entre a chuva
com o azul dos seus olhos forrando um céu recente,
então sei que viver é ser um rio apenas,


um rio adolescente, um rio sem limites
correndo entre os lábios e os dedos da carícia
como um rapaz de luz para o coração do mundo
como um barco de sol entre as veias do sonho.


Então sei que é verdade a cabeça e a montanha
e o meu amor nascendo na linha do horizonte
como a face da manhã apoiada na mão,
como a laranja madura entre os cabelos da noite.


Quando na minha terra o perfume das rosas
enche todo o vale e sobe pelas colinas
e a rapariga do vento para a meia encosta,
com os braços carregados de flores e de pólen;


quando os pássaros interiores se escapam pelos dedos,
tocando com as asas o espaço da cabeça,
quando os velhos assomam ao limiar das casas,
colhendo em suas rugas o primeiro desejo;


quando a rapariga de Maio desce pela encosta
com as flores de giesta e as amoras silvestres,
então é bom sentir a cintura da ânfora,
as têmporas unidas, as mãos que viajam.


Então é abandonar a alma sem fronteiras,
o corpo entre as abelhas e os salgueiros em flor,
comer o alvo pão em toalhas de desejo,
correr com a cabeça erguida entre os pássaros,


aproveitar os dias até à última migalha
e receber a noite como se recebe a amante.

José Terra
Obra Poética, ed. Modo de Ler
Colecção As Mãos e os Frutos




quinta-feira, 12 de junho de 2014

ronaldização da realidade


Em 15 de janeiro de 2009

Trabalho em vias de extinção
Hoje vi empurrar para a borda alguns amigos. Eu podia fazer parte do grupo. Pela manhã disseram, a cada um, individualmente, O teu posto de trabalho foi extinto. Eu podia fazer parte do grupo, todos nós podíamos. Mas foram eles, os meus amigos. O João Paulo Mendes, o João Fonseca, o João Paulo Coutinho,o Alfredo Mendes, o Luís Bizarro Borges, a Rita Senos, a Paula Silva, a Paula Sanches, o Hernâni Doerllinger, o Manuel Almeida, o Jacinto Velhote, o Paulo Silva, o Paulo A. Silva, o Marcos Cruz, o Hernâni Pereira, o Amin Chaar, o José Reis - o Diamantino Fitas, que sabia do que eu falava quando falava de enxertia, de abóboras ou de navalhas de Palaçoulo. Da terra, das coisas simples da terra. Perdi parte da juventude junto destes camaradas: é duro vê-los tombar da borda. A lista, enfim, é bem mais extensa.

Ontem, 11 de junho de 2014, um dia depois do desmaio de Cavaco Silva e um dia antes da abertura do campeonato do mundo de futebol, continuou a saga. A administração da controlinveste, agora dirigida pelo doutor Proença de Carvalho, mandou os serviçais despedirem a Joana de Belém, a Paula Lima, o Alfredo Teixeira, o José Carmo, o José Mota, o Hélder Robalo, o Eurico de Barros, o Nuno Galopim, a Lisa Soares, o Albano Matos, o Fernando Madaíl o João Paulo Baltazar... enfim, a lista, de que também faço parte, é muito muito mais extensa. Fui despedido, via telemóvel, ao fim da manhã quando ia buscar o meu filho mais pequeno à escola.
A "ronaldização" da realidade é quase um facto consumado. A Direcção do Diário de Notícias, talvez por não dominar bem a gramática, nessas águas sabe alegremente navegar: afunda a grande nau, é certo, mas ainda há mais gente a 'abater'.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Hora di bai




é apenas e só um recomeço.
estou vivo e escrevo sol.

domingo, 1 de junho de 2014

Ocupação da paisagem




arroteia-se o chão bravio
o tojo, raízes
fetos, urze outros arbustos
de teimosia à secura
se faz monte de palavras
mortas que o fogo ilumina.


cinza uma ou outra ponta
de raiz por arder
o ancinho junta esses focos de resistência
que a luta homem fogo terra
é muito antiga


de novo o fogo
serpe de fumo a desentender-se
no dia claro.

uma voz ao fundo
o homem suspende o gesto
livra os bois do jugo
transitória acalmia
na clareira cercada pelo bosque
e seu doce alvoroço de seiva.

ocupação da paisagem
pela rebeldia domesticada do gado
à força de braços
alvião enxada ferro de monte
se amanha a pedra
amanhã rasga-se alicerce
as pedras acham a cama
harmonioso afagar de cantaria
se abraçam entrelaçam
sobem devagar como árvore
de fruto: eis os socalcos
a embargar aluviões do devir

da cinza das palavras mortas
novo vocábulo desponta
a paisagem se r e p a r t e
e não é de todos: a posse excluiu
levanta sebes muros
paredes de pedra maneirinha

o mundo dos recolectores na rota dos frutos
viver silvestre entre penúria e bagas maduras
entre conchas marinhas e o veado cativo
na armadilha: essa humanidade
se mistura nos restos de folhas
ossos fragmentos de galeões
e se forma matéria da aluvião

palavras mortas tojo raízes
arbustos caroços de pessegueiro bravo
fogo
o fogo não tem memória.
*


Antes da lua, entra no bosque

um traço – crepita o mundo num devir
de outrora. usufruto natural da fadiga
que a noite enxuga.
ele trabalha até ao último vestígio claro
cultiva a paisagem: cadabulha lá onde
a ignorância do arado não escreve terra limpa.
antes da lua, entra no bosque : redime árvore
morta: a mão, um traço – se alumia o inverno
pela cor inaudível da tangerina.