sábado, 31 de maio de 2008

Lenha verde


*

o fogo da buganvília pela parede acima

labareda muda no desfecho de maio.

hei-de voltar para o ano. prometo. sem memória

da melancolia. a mãe desaprendeu a fala

a mãe cativa, só o verde dos olhos me aperta

e murmura como se eu fosse ainda o menino

desavindo com o sonho.

digo,

mãe: vou cortar lenha verde de pinho e alecrim

na mata das dornadinhas


faremos uma fogueira pelo s. joão

sexta-feira, 30 de maio de 2008

A cor dos frutos

a tempestade sobre a casa
chuva desabrida toda a noite
são carros de pão, diriam
os antigos que pela fome mediam o mundo

a tempestade, digo
no desfazer do dia
olho a tristeza da cerejeira
sem a cor dos frutos. despeço-me dos que vêm de maio

domingo, 25 de maio de 2008

O diabo no meio da gente

Chamam-lhe “lavoura dos cães”. Homens e mulheres mascarados percorrem a aldeia a festejar o fim do ciclo agrícola. O diabo, que anda à solta, irrompe dos milheirais: espalha a desordem. Inesperado carnaval em pleno mês de Agosto.

O demo, em figura de gente, saiu à rua. Raptou raparigas, espavoriu o manso rebanho de Deus. São Bartolomeu, estava por perto, prendeu-o a cadeado como fosse cão insubmisso. As moças respiraram alívio. Por pouco tempo. Nem qualquer coleira detém o poder do demónio.

Engana-se, leitor. Não é uma história fantástica. Nós tocámos o diabo. E vimos dois cães enormes a puxar um arado, e as cabras a arrastar uma grade às avessas. A cena integra ainda homens mascarados: trazem enxadas, engaços, forquilhas. Cortejo grotesco do povo de São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, a assinalar o fim do ciclo agrícola. Depois do caos, a terra repousará em silêncio até à Primavera.

São Bartolomeu dá o nome à aldeia. Todos os anos, no dia 24 de Agosto, o povo louva o padroeiro. A imagem do santo, com o maligno acorrentado aos pés, sobe ao andor. Sai a procissão, passo vagaroso: o peso do sagrado e os fios eléctricos perturbam a caminhada. Duas horas volvidas, os foguetes anunciam o regresso do padroeiro à igreja. Acaba a parte religiosa. O pároco, por via de equívocos, recolhe a casa. Mas a festa continua. Um cortejo pagão calcorreará o mesmo espaço por onde passou o sagrado. Os quatro ou cinco mil fiéis esperam agora o diabo. Ele irá lançar a desordem na canhestra “lavoura dos cães”. O desfile sai ao pôr-do-sol. Ouvem-se os tambores.

Dois homens a cavalo surdem, abrem caminho na multidão. Vêem-se os primeiros mascarados: um padre, um barbeiro, os noivos; depois, esfarrapados camponeses batem com os utensílios agrícolas na terra dura do caminho e lançam sementes sobre o público. O arado puxado por dois cães aparece, conduzido por um mascarado. Outro homem com o rosto atrás da máscara segura as rabiças, que são dois cornos de bode. Como no ciclo da lavra, a seguir ao arado vem a grade. Mas ao avesso, puxada por um casal de cabras: aturdidas, como os cães, no meio da algazarra. Entretanto, o padre, na frente do cortejo, benze os espectadores, ao longo o caminho, com uma brocha que mergulha num balde de água suja (“misturada com urina”, suspeitam alguns dos benzidos). Outro dos mascarados traz um velho sulfatador e, tal como o padre, borrifa o público. De igual modo, cabras participam na benzedura: quem as acompanha, a espaços, faz parar o cortejo para as mungir: vira as tetas na direcção do povo, e, de súbito, o jacto de leite atinge os mais distraídos.

Na ruidosa confusão, caminha São Bartolomeu, longo manto cor de fogo, espada desembainhada. A experiência ensinou-o a ficar atento, mais atento, no dia em que o diabo arma desacatos. Bruscamente, do meio do milheiral, irrompem gritos. Sobressalta-se na assistência. Eis o ataque: um homem em grande correria (quase nu, meia preta enfiada na cabeça) surpreende uma rapariga, arrasta-a para o cortejo.

O diabo fez a primeira presa. Acode, célere, Bartolomeu. Feroz e demorada a luta, mas os poderes do santo são mais fortes. Pouco depois, vê-se o demónio preso a cadeado; mesmo assim, investe contra as moças e as mulheres (o corpo feminino - não esqueça, leitor - é o lugar de eleição do maligno). O cortejo avança, repetem-se as cenas do jacto branco e as outras benzeduras. O tanger dos tambores; público, vindo de muitas partes, ora a gritar, ora a sorrir. Na retaguarda do desfile, dois mascarados, ao som da concertina, cantam ao desafio. Matreiro, aproveita um divino descuido e foge. Voltará, mais tarde, no momento em que o padre se preparava para casar os noivos, no palanque a escassos metros da igreja. Interrompe a cerimónia, rapta a noiva. Outra vez as correrias, trambolhões, gritos. A sedução de São Bartolomeu resolve, de novo, o problema. Vencido o belzebu, a lavoura dos cães, sempre em festa, regressa a casa.

Quem és tu, diabo?

O homem no papel do diabo deve ser solteiro. A explicação que nos deram foi esta: “Está mais livre para apalpar as moças». Gesto, enfim, de algum pudor cristão numa festa pagã, onde tudo vale e a lógica das coisas aparece ao contrário. A tradição não se cumpriu. O demónio que vimos era casado. Ágil, lesto, irrequieto. E, ajudado pela alegria fugaz do vinho, bebido antes do cortejo, levou quase ao extremo o desempenho do papel. No final, exausto, sangrava de ferimentos nas pernas e nos braços. Em São Bartolomeu do Rego, pode confirmar no próximo mês de Agosto, o diabo não é tão feio como o pintam Talvez por isso continue a mobilizar tantos devotos.

(texto publicado no DN, em 1994)

sábado, 24 de maio de 2008

Voo nem arte

Os pássaros novos ainda não aprenderam
o voo nem a arte do silêncio.os gatos e sua astúcia conhecem essa fragilidade fatal. a mulher que vem de maio diz, por estes dias a crueldade dos gatos é pouco menos que infinita

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Trocar de cravo

*
Tinha um cravo na mão,
mãe, guardo-o ou não?
a mãe disse, a alegria
divide-se
fui para a rua, juntei-me
ao povo
sempre com o cravo na mão
veio a noite, nasceu o dia.

muito anos se passaram
tenho ainda o meu cravo,
mãe, guardo-o ou não?

a mãe diz-me, a memória
transforma-se.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Laranjas verdes

No silêncio do olhar dos gatos há camadas de memórias, sedimentam-se, em aluvião. Matéria de aluvião. Mas que guardam, que defendem ou preservam, todos estes gatos em redor do castelo de Castro Marim? E o olhar dos novos felinos, descobre o homem, herda o mesmo silêncio: adensa a espessura de vida para vida. Matéria de aluvião, a memória. Que desvario cometeram os gatos, quem os condena a arquivar o silêncio?

*


O homem desce do castelo, não traz lança em riste, nem uma pedra em cada mão. Inerme, liberto do homem anacrónico. Desiludido, contudo, desiludido por não decifrar o silêncio acocorado nos olhos do gato. Perto da noite, detém-se num pequeno terreiro com laranjeiras, um lago ao centro, brancura limpa das casas em redor. Na soleira da porta, uma mulher e uma menina em silêncio. É Agosto, pensa o homem, incomodado com a quietude infantil. Aproxima-se do lago, com seu chafariz emudecido, e descobre quatro laranjas verdes no fundo da água.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A PEDRA CABISBAIXA

*

Tu não sabes, a mulher das colinas

esperou por mim a vida toda. Admitiu

o impossível conselho teu: não dorme

para perseverar a juventude.

Uma ave silenciosa diz-me o atalho das colinas,

a mulher sustém um lírio contra o peito.

Peço, peço-lhe que me leve junto do muro,

tu sabes, onde se derramou o sangue.

Ela diz: os campesinos venderam tudo

e abalaram da fome

a pedra cabisbaixa do muro partiu também.

Eu conheço a voz, esta voz rouca

como silêncio do lírio morto.

Paramos num sítio seco, terra pobre

terra pobre, desabrigada da mudez afável

das árvores: a mulher devolve o lírio

à límpida voracidade da luz. E parte

como se fosse ainda rapariga, sem olhar para trás.

Descubro sinais da migração da pedra

o teu nome. Apanho do chão o fogo adormecido.

Rebelde melancolia, a palavra.

sábado, 10 de maio de 2008

Maio todo

na escrita é que me engano
escrevo maio de memória
como quem procura comer a rubra
palavra cereja

maio na folhagem das tílias
do liceu sá de miranda
onde comigo me desavim
as raparigas bonitas que a minha timidez
não pôde amar. maio todo
quando o sangue novo atiça
tenros melros e seu tosco esvoaçar
contra a verdura
maio diz-me a memória da escrita

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Hortelã intransitiva

que procuro na borrasca de maio
as cerejas da infância as trutas
na manhã de ervas húmidas nos rios de basto
o rio de painzela onde emergiam lírios
nos açudes
era aí entre as açucenas que o meu pai
longe da servidão da velhice pescava as trutas
o silvo do fio retesado, a frágil cana da índia vergada
e trémula como vara de vedor .
atapetava de hortelã o cacifo de vime
a morte das trutas cheirava bem.

que procuro na borrasca de maio
a hortelã, esse cheiro da hortelã
felicidade indizível talvez intransitiva
longe da ignorância da velhice o meu pai
a bater lentamente o painzela
macieiras floridas debruçadas na água
campos lavrados em redor. um cão faminto e enfurecido
ladrava do fundo do medo nós
o pai e eu passos cuidadosos
para não assustar o rumor límpido da água .

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Sangue circunscrito

os que vêm de maio colhem rosas bravas
nos campos de basto
um homem diz, o esplendor
deflagra no silêncio das violetas no rio olo
a água liberta das tormentas do inverno afaga
com doçura os seixos a negrura do xisto. o esplendor de maio
diz a mulher que na infância fazia brincos de cereja
são estas rosas bravas sangue vivo
circunscrito na aluvião de verdura

os que vêm de maio param em refojos
bebem vinho – memória verde de pobres camponeses
caídos na paisagem

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Na infância a mãe

viageiros floridos
como gamos na época de seduzir
os que vêm de maio olham-me
uma mulher diz , na infância a mãe
pediu-me para retirar o caroço
de cerejas. Passei uma tarde na paciente tarefa
que um bolo escondeu. Desde esse dia gosto de as ver
gosta da palavra que lhes dá o nome, mas nunca
mais comi cerejas, nunca mais as suspendi nas orelhas
como se fossem brincos – gesto sensual irrepetível
como toda a juventude é.

os que vêm de maio cercam a mulher
a companheira de viagem como se quisessem
apartá-lo do meu olhar