terça-feira, 30 de outubro de 2007

Pavese no Café Ceuta

Um copo de cerveja. O caderno aberto, onde escassas palavras encontram resguardo. Breves palavras. Nas tílias da Praça Filipa de Lencastre, uns passos abaixo, a verdura enlaça os ramos. É Maio, o fulgor do mês de Maio. Há muito tempo, o homem do saco de cabedal confiou-me um segredo: a rebentação da folha dessas apaziguadoras árvores açulava a angústia. Desconforto antigo. Na aldeia do homem do saco não havia tílias. As árvores, no campo, ofereciam fruto ou madeira de excelência. Qualidades arredias da tília ornamental. Desaba sombra na terra: sombra molhada e generosa, como todas, ou quase todas as árvores de crescimento sôfrego. Fruto, fruto, se o dá, nunca ninguém lhe meteu o dente, e a arte da carpintaria despreza-lhe a madeira: espevita a gula do caruncho, cede indefesa à melancolia da humidade. Ele viu as tílias pela primeira vez em terra distante. Era jovem ainda, tresmalhado dos montes: o porte altivo da árvore surpreendeu-o, o garbo dos ramos também. E só mais tarde lhe pôde sentir, sem desassossego, o aroma ameno a adocicar a Primavera. A folhagem da tília, invisível ferro caldo, marca um tempo da juventude: quando o cocuruto atinge verdura plena, irrompe a época dos exames – tempo de alegria perturbada.
Da mesa do café, o homem não vislumbra as árvores da Praça Filipa de Lencastre. As mesmas palavras, no caderno aberto, acocoradas na caligrafia mínima, canhestra: rebanho transido a pressagiar odores do lobo? O homem espera alguém que eu desconheço, personagem de um sonho – ou de livro? –, talvez um amigo esmaecido na memória. É esse o vício. O seu vício absurdo quando recolhe à cidade. Senta-se no Ceuta, bebe cerveja fria, o caderno aberto no tampo da mesa. Antes da noite, desce à Filipa de Lencastre, observa as árvores, a grandeza silenciosa das tílias que lhe aferraram a juventude. E parte depois, numa das camionetas da Rodoviária Nacional, rumo a lugar nenhum. Hoje, não. Declina a tarde, o homem adivinha algo de estranho. Rude lembrança, não muito antiga, devolve-o ao início de outro Maio, a trágica noite na Avenida dos Aliados: povo escorraçado à força de bastão e balas. A lembrança, essa memória com sangue, incomoda-o, tanto que pede cerveja e retoma a escrita, como se a escrita fosse gesto animal de esgravatar no papel para encobrir impurezas. «…Podes amar uma cidade fora da geografia da tua infância? Leve sopro derriba os amores adoptivos, carece de afecto primordial a sua frágil argamassa. És desconhecido, serás sempre um estranho. Tu não sabes amar a cidade. A cidade, de igual modo, te abandona. E aqui foste feliz, guardas ainda fragmentos dessa transitória e irrepetível felicidade. Do Largo dos Grilos, madrugada de Junho, vias esquiva luz beber o rio; o arraial florescia, e tu escorrias por uma escadaria quase infinita. À tua frente esvoaça a fina saia longa da mulher que amaste, amas. Ainda amas. Pela mesma escadaria, soubeste depois, mulheres de um tempo brutal, em sentido inverso, irrompiam da água com molhos de carqueja à cabeça. Feixes desmedidos, as mulheres perdiam o rosto, abdicavam da humanidade: eram (a imagem não te pertence) árvores da floresta andarilha. Nessa madrugada de juventude, nada sabias do tormento das carquejeiras, mulheres no limiar da humildade. Era a festa, o povo todo nas ruas… Como é possível negar amor a uma cidade que enfeita a noite com ervas de cheiro? Um vulto magro, destoante no vestir, aproxima-se da mesa. O homem do saco de cabedal suspende a escrita: olha-o,
Eu sabia!
O desconhecido pede água mineral, num tom de peregrino enfraquecido. Observa o caderno aberto,
Verso longo… Curioso, também o julgava mais velho, rente à morte!
Olham-se, o peregrino apercebe-se do equívoco,
Peço desculpa…
Faz um gesto ao empregado. Paga a bebida, vai abandonar a mesa. O homem do saco de cabedal, toque suave no ombro, impede-o, Li todos os seus livros, os romances, a poesia, o diário, um imenso fastio de tudo. Um gesto. Não escreverei mais: última fala do Ofício de Viver.
O outro homem diz. Li todos os livros do poeta que aqui julgava encontrar, O Peso da Sombra, As Mãos e os Frutos, Os Amantes Sem Dinheiro… palavras luminosas, amena melodia pastoril por dentro. Por isso, viajei de lugar nenhum, do silêncio mais longínquo, até esta cidade.
Por que arte chegou aos livros em lugar nenhum? Interrompe o homem do saco de cabedal (acena ao empregado).
Os livros, primeiras edições, chegavam ao silêncio mais longínquo, sem dedicatória, na companhia de um cartão manuscrito. Caligrafia de outro tempo, elegante, de quem deveras ama a escrita. O autor desses cartões é, com certeza, um arquitecto: quem povoa a folha em branco, descobri ao ler esses bilhetes, desenha a casa das palavras… Boa cerveja!
O homem do saco de cabedal fecha o caderno, não vá o viajante de lugar nenhum ver na caligrafia um bairro de subúrbio, emaranhado e triste. Sujo, imundo e violento,
Na temperatura certa, toda a cerveja passa por boa… (Guarda o caderno no saco). O poeta que procura não frequenta este café. Vive cerce ao rumor do mar, rosto precário disperso nas paredes da moradia. Rente, rente à morte. Rente à morte, sim.
Não é o poeta que procuro,
diz o desconhecido.
Eu sei. O outro, o que constrói a casa das palavras, decrua sonhos no Café Progresso, bem perto daqui.
Leve-me lá, por favor!
Será uma honra. Antes de partirmos, permita-me uma pergunta, uma única pergunta: a mulher da colina, onde se derramou o sangue e largámos o nome e arma, ainda espera por nós?
Basta de palavras.
O homem de nenhum lugar levanta-se, perturbado. Abandona o café – atravessa a rua, passo destemido contra a furiosa impaciência dos automóveis.
Retira o caderno do saco, abre-o. Retoma a escrita,
«.Tu não gostas das cidades

domingo, 28 de outubro de 2007

veados floridos

que fazer de tantas palavras
rolam na cabeça como veados feridos
a zagalote: em busca da morte
à procura da morte no local mais obscuro
do arvoredo

sábado, 27 de outubro de 2007

Bestiário para as crianças

Sereia



Uma mulher sentou-se no rochedo, pés imersos no mar. E assim ficou muito, muito tempo. A todos os barcos que por ali passavam, ela perguntava aos marinheiros se tinham visto o seu amado. «Como é o teu amado?», queriam saber os marinheiros.
«É belo como um lince, olhos da cor do sargaço, pele macia como a espuma do mar…» Quando a mulher emudecia, já os barcos iam longe, engolidos pela névoa.
Depois de muita espera, exausta e faminta, a mulher quis sair do rochedo. E foi então que viu os seus pés, que entretanto se uniram, transformados numa grande barbatana, escamas a alastrar nas pernas! Estendeu os braços, mergulhou com um sorriso que nem o frio salgado da água conseguiu dissolver.
Não sei se a mulher descobriu o amado. Mas ainda hoje, muitos anos depois, quando cruzam aquele rochedo, os velhos marinheiros contam que um dia ali viram uma mulher muito bonita, «olhos da cor do sargaço».

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Aldeia que nunca existiu

Às vezes, poiso o cavalete na memória e pinto, lentamente, paisagens que andarilhei na infância. A arte, a minha arte, contudo, não é essa: eu trabalho a madeira. Entalho santos, recomponho as tábuas de altares torturados por secreta humidade que prece alguma jamais enxugaria. Mãos mundanas, as minhas mãos, se desgastam no afago do sagrado. Às vezes, poiso o cavalete na memória: procuro geografia remota. Tontice, eu sei. Mas enquanto pinto, recupero um tempo perdido. E, então, vou pelos campos floridos com o José, que arriba à minha aldeia no Verão. Ensino-lhe o nome das árvores e outros segredos que enchem de espanto – ou, talvez, de medo – os meninos da cidade. Certa vez descobrimos, num loureiro, o ninho de melro. Averiguei-o, delicado, com a ponta dos dedos: disse, tem três pedrinhas. Ele espantou-se. Sim, pedrinhas. Se dissesse ovos, as formigas escutavam e depressa ocupariam o segredo. E filhotes de melro, de todas as aves, enquanto privados da liberdade do voo, são sapinhos! Assim, as cobras, que sempre nos estão a ouvir, desinteressam-se da palavra. Numa das jornadas por montes e vales, no mês de Agosto, falei ao José dos perigos da mordedura de licranço: sem cura, sem descanso. Nós, os da aldeia, damos valor à palavra, à sabedoria dos velhos. Sendo assim, licranço que emergisse na claridade via de súbito a irregular fuga truncada pelo fio da sachola – e se sachola não houvesse, pedra sempre se acha a jeito para esfacelar cabeça de réptil. No fim de Agosto, quando as latadas derramam aroma doce de uvas maduras, o meu amigo partia. Eu acompanhava-o até ao desfecho da aldeia, e ele nunca, nunca olhava para trás. Despedia-se, sem se virar para a aldeia num último olhar. Os anos foram escorrendo, guardámos as fisgas, esquecemos o carrinho de rolamentos, começámos a duvidar da sabedoria dos velhos, pelo menos no capítulo da eterna ruindade do licranço. E houve um Verão que o José não apareceu. Nunca mais regressou à aldeia. Anos volvidos, escreveu-me um postal como quem salda a última parte de uma dívida de gratidão. No postal, ele falava-me com entusiasmo da memória de uma aldeia que nunca existiu – nem na terra, nem no fundo do mar, nem para lá das nuvens. Dessa vez, fui eu a ficar deveras espantado com as palavras de gente da cidade. Mas perdi pouco tempo a remoer a memória da aldeia que não existe em parte alguma. Dias volvidos, parti para África, fui à guerra, e o medo, o medo da morte, enfim, humedecia quase todos os meus pensamentos. Lembro-me de ter levado o postal comigo, e a intenção de responder ao meu amigo quando aportasse em terra longínqua e desconhecida. Acabei por nada escrever. Houve então um tempo longo, muito longo, de silêncio, sem notícias do meu amigo. Só quando poisava o cavalete na memória ele aparecia a partilhar o espanto juvenil. Há dias, porém, ao ler o jornal, reencontrei-o subitamente! “Memória de aldeia que nunca existiu” era o título da notícia e o nome da exposição de pintura. Anotei o local, preparei a viagem até ao Porto. A inauguração já havido decorrido: observo devagar, quase sozinho na galeria, o trabalho do meu amigo pintor. E diluo a dúvida que trago desde as distantes férias de Agosto: descubro a razão por que o José, na despedida, nunca voltava o rosto, num derradeiro olhar, na direcção da aldeia: ele levava-a dentro do coração; desse modo, como poderia ter saudades de algo maravilhoso que trazia no seu íntimo? Entro na aldeia-que-nunca-existiu, habitada pela memória do José e das suas personagens: a mulher azul, suave melancolia nos olhos, sustém no colo um galo colorido como se fosse um menino, o filho que um dia partiu. Ergo um pouco o olhar, vejo o homem da bicicleta – militante clandestino, figura saída do poema de Herberto Hélder? –, pedala, o homem pedala, senhor da sua melancolia, pelo domínio dos anjos e outros alados seres sagrados. De regresso à terra chã, observo o comboio a vapor, a entrar no desconhecido. Outro homem em movimento, corre, forquilha apontada: como uma lança ou tridente de gladiador. Que medo acirra esta criatura? Há ainda o pastor, apascenta ovelhas e tristeza, um velho sentado no cadeirão, em plena paisagem: esteve ali a vida toda, à espera do homem que caminha, do homem que regressa à aldeia-que-nunca-existiu. O meu amigo não está na galeria, e eu não pergunto por ele: continua, porfia, como caçador a caça, a aldeia. Uma terra imaginária, tolhida pela nostalgia assim como ficava a minha aldeia depois de Agosto. Digo-vos agora o meu nome: eu chamo-me Gualdim. Não volto a poisar a cavalete na memória. Na minha arte, já o disse, entalho figuras religiosas, componho a madeira de altares feridos pela humidade. Nem o sagrada é capaz de iludir a velhice: mãos mundanas, as minhas, se desgastam devagar. Anotei o endereço da galeria. Quando chegar a casa, prometo, vou responder ao postal que o José me enviou há muitos, muitos anos. Talvez ele até já nem se lembre de mim. Dir-lhe-ei, és o filho inventado da mulher azul, uma personagem de Tonino Guerra, retirada do Livro das Igrejas Abandonadas.

(Para José Emídio, guardador de imaginários)

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Redonda doçura

Outras palavras, remotas talvez, povoam o silêncio da brévia. Definha a luz última do dia: os pardais convergem na direcção da tangerineira (quantas árvores habitam uma palavra só?), mergulham na densa ramagem – adormecem embalados na redonda doçura dos frutos.

(in Brévia, hidra editores)

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Bestiário para as crianças

Joaninha



Diz-me, joaninha: o teu pai
ainda mora em Lisboa?
Não fiques triste,
às vezes por uma rima boa
vão de viagem
os nossos amigos
a comer sardinha e broa.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Bestiário para as crianças

Lobo

Em nome do medo te deram caça
e os pastores com mil
histórias terríveis te apedrejaram

já não desces ao povoado
pela fome branca da neve
nem o rebanho afoito sobe a montanha
a catar a frescura do Maio.

Peixe-espada


Nobre que seguia
nas caravelas portugueses
e caiu ao mar.

sábado, 20 de outubro de 2007

Primeiras chuvas

O homem atravessa as primeiras chuvas, o silvo da ventania. Despojado. Sente as mãos entorpecidas, inúteis, como as mãos de pescador da água doce submerso nas chuvas de Março. Do interior das botas debanda um ruído de água impura. O rapaz e a mulher (ainda jovem), emudecido colóquio de melancolia, guardam o morto. A porta da capela quase fechada, só uma fresta alicia claridade breve e encurrala o frio. Em redor do esquife, cerrado, apto a navegar por dentro da terra, nem flores nem odor a círio aceso. O rapaz, apenas a mulher e o rapaz. Furaram a noite ali, anteviram, no gume do vento, o dia turvo e despovoado. Chuva, depois a chuva, agreste. Chuva de Dezembro: condena os vivos, condena os vivos até aos ossos.
Fossem outras as circunstâncias, beberiam aguardente nova sobre o jejum natural, sem mastigo apressado de pão milho por via de desembravecer a labareda interior. Ou vinho, desse vinho azedado que a bondade dos senhores concedia pela alva aos moços de servir. Fossem outras as circunstâncias, ali não: por resguardo da alma prisioneira do finado. Libar vinho no templo (figuração branca do sangue de Cristo) é graça apenas dos artífices do divino. Peleja corajosa, sem dúvida, a da mulher e a do rapaz contra o frio – anuir ao desconforto seria agora apoucar a mágoa, tingir o luto.
O homem entra no templo. A mesma folga na porta. A bainha de luz e frio acha a parede lateral e por aí definha, fronteira oblíqua: separa quem entra da essa, da santidade que a penumbra invalida. Num passo pantanoso, pisa o traço de claridade. A mulher levanta o rosto: olhos de submissa chama alumiam o viandante, desde muito longe – desde a infância, talvez. Comove-se. Dá um passo em frente, estende o braço, mão aberta, mas o homem sela a saudação com um beijo.
Só eu guardo os mortos abandonados,
diz a mulher.
O homem olha o rapaz, persevera o frio e o olhar cabisbaixos,
É o filho,
diz a mulher.
Comove-se. No rosto, aparentemente jovem, esquiam duas lágrimas velozes [Cessa aqui o ofício do narrador que agora me parece, além de infeliz nas imagens, desapiedado]. Comovo-me, devastado pelo silêncio do rapaz. Lembro (num sussurro que a penumbra instiga) à mulher,
As chuvas do Inverno flagelam os vivos.
Num tom ciciado, que a presença do rapaz reivindica, ela anuncia,
Beber muito cansa a alma. Deforma o corpo.
A que horas é o funeral,
pergunto.
Depois do outro enterro,
diz a mulher.
Estendo um cigarro à tristeza do moço, ofereço outro, já aceso, à mulher. Emudecidos, fumamos emudecidos em redor do morto: abrigado da luz da manhã, o morto, como se quisesse dormir até mais tarde. Talvez o fumo o aborreça. O rapaz transpõe a fronteira: joga a beata na chuva pela fresta breve da porta. Pressente a manhã desabitada,
Está frio,
murmura.
Eu e a mulher deixamos cair as pontas de cigarro na humidade suja dos ladrilhos, rente ao esquife. Quando éramos crianças, a capela tinha soalho. Pouco antes das novenas de Maio, mês de Maria, a zeladora do templo passava um pano molhado e sabão amarelo nas tábuas de castanho. Depois, sempre de joelhos, esfregava ao soalho com escova de piaçaba. Adivinhávamos o árduo desvelo pelo cheiro do sabão amarelo – a zeladora, viúva temporã, trancava a porta a olhares impúdicos.
Sem flores a bordejar o esquife, a morte parece mais aceitável.
Esquife… esquife,
silva o rapaz, a devassar a minha palavra.
É o barco do teu pai,
diz a mulher.
Não sou filho de toupeira…
Pobre diálogo e pobre, me parece, continuaria. Pés encharcados, a roupa molhada: aguardente, preciso de aguardente e continuar os caminhos de ninguém. Por uma só vez, digo, passei em Vilar de Amargo, à procura do meu amor da Guarda. Subi os montes em redor: e o que lá vi? A pedra maneirinha dos muros a emigrar. Fatal navegação à vista.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O labirinto dos livros

Para que servem? A dúvida morde-me os calcanhares quando entro numa feira do livro. Para que servem os livros? Uns ainda envoltos no cheiro a tinta fresca; outros marcados pelo tempo, com dedadas do tempo. Livros, livros; muita gente no labirinto dos livros. A inutilidade dos livros. Serão leitores? Antigos leitores, futuros leitores, clandestinos escritores a imaginar a glória enquanto observam os livros dos outros? E que procuro eu no labirinto das palavras? A dúvida, eterna dúvida, salta aos calcanhares, segreda-me: Desiste, desiste, pá. Não escrevas: planta glicínias junto da porta das casas abandonadas. Ou uma romãzeira na manhã límpida de Março. É a escrita da terra, a mais simples, a pobre das escritas. Terá sempre leitores. A dúvida. Sempre a mesma dúvida: para que servem os livros? Porque é teimosa e perturbadora, enfim, eu respondo-lhe: para quase nada. Aquele quase assusta-a, afasta-a. E então, avanço liberto no labirinto: revejo velhos livros que me ajudaram a atravessar a noite, ou verteram melancolia na tarde de Agosto, ou me trouxeram a revolta (a revolta também se lê e é contagiosa) em momentos de resignação.
Os livros!
Os livros, os meus livros à frente de toda a gente. Em indefeso silêncio, à espera que alguém os leves. E os ilumine. Como quem planta uma romãzeira para dar outra luz à manhã. Amanhã. Amanhã vou a Braga, à Feira do Livro. Levo a dúvida no bolso – como clandestino leitor.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Da vida das palavras

Guarda-sol



A Mariana
tem um guarda-sol
um lírio
e um caracol

quando está a chover
fica à janela
a ver o lírio crescer


Guarda-chuva


O Francisco
irmão da Mariana
tem um guarda-chuva
e um grilo

todas as manhãs
o sol canta nos seus olhos

Gabardina

O David
irmão do Francisco e da Mariana
tem uma chupeta
quando for grande
nos dias de chuva vestirá a gabardina
[pai, o que é uma gabardina?]
para andar de bicicleta.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Bestiário para as crianças

Cavalo



A mãe contava-me a história do cavalo voador. As suas asas eram enormes e leves, como a luz da manhã.
Um dia, eu pedi:
Mãe, dá-me um cavalo assim!
E como o vais alimentar? Os cavalos voadores precisam de muito penso!
Levo-o pelos campos, pelos prados. Pelos montes floridos.
Filho, o nosso cavalo não come: bebe o brilho das estrelas.
Ainda melhor, mãe. O céu é uma copa de árvore iluminada de estrelas!
Mas à noite, meu filho, tu estás a dormir.
Ainda melhor, mãe. Assim posso galopar por dentro dos sonhos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A memória de Bento da Cruz

Conheço Bento da Cruz há mais de vinte anos. Neste espaço de tempo, ele abeirou-se da idade madura, eu afastei-me da juventude. O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, deixa marca por onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior deste escritor, avesso à efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o silêncio. Bento da Cruz é um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra singular e perdurará nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que ninguém, Bento da Cruz trata a memória como matéria perecível. E na memória há palavras privadas de afecto. Isto é: precisam de respirar na página, porque o nosso célere quotidiano padronizado as esquece – e palavra esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra literária do autor de O Lobo Guerrilheiro é, sem dúvida, um abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao silêncio final – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – é uma das dádivas deste escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) surge como outro dos contributos de Bento da Cruz para a Literatura portuguesa. É a fala mais genuína do povo, um povo concreto – marcado pela miséria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste. Um povo, no entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A solidariedade dos humildes é a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz preservam essa memória (matéria perecível) do povo do Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo do Barroso que soube acolher os fugidos, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. A memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, emerge como outro dos legados de Bento da Cruz aos homens do nosso tempo e às gerações do futuro. Uma mão chega para contar os escritores que, antes de Bento da Cruz, ousaram atear esse passado sangrento. Mas o autor de O Retábulo das Virgens Loucas não teme a memória, ele conheceu guerrilheiros rojos e outros fugidos. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários tolhidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz evoca a Guerra de Espanha e traz à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar às autoridades a presença de bandoleiros (as autoridades portuguesas designavam assim os refugiados de Espanha) era crime. E houve, por muitas aldeias do Barroso, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, o pão e o vinho a esses homens transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heróica dignidade das gentes do Barroso, nas décadas de trinta e quarenta do Século XX, Bento da Cruz enobrece todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade da sua obra: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos não têm fronteiras. Bento da Cruz é um escritor do Barroso, um grande escritor português.

(texto lido na homenagem ao escritor, no seu 80º aniversário,em Montalegre)

Outono

das aves caem
as penas.
emigram as árvores
à procura de outro sol.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Sede

O que bebem os rios
quando têm sede: o sono
dos peixes,
a sombra dos salgueiros
ou a seiva do estio?

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Machico

As rãs nas folhas
do nenúfar
humilde manhã de sol
junto ao antigo forte

fotografo-as
como se fosse possível
guardar a felicidade

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Laranja

o frio dos meninos
pobres nas manhãs de inverno
cheira a laranjas.

[Bestiário para as crianças]

Cisne


Seria mais autêntico
escrever cisne com S.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Especiarias

Deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos

inocentemente felizes
a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores



(in Pequeno Livro da Terra
)

domingo, 7 de outubro de 2007

[Pássaros maduros]

com a palavra sulfato *
as árvores: crescem pássaros maduros
e bons nos ramos. à tardinha chegam de longe
os frutos de plumagem rara - pernoitam
por entre as folhas









* não é tóxico; os pássaros podem ser colhidos directamente do produtor.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Enquanto escrevo magnólia

Descobri Rosalia e a Galiza sem homens para colher o pão. Fui menino, outra vez límpido menino, acabado de nascer. No Maio da tua voz aprendi a mágoa que se estendia ao outro lado do mar. A tua magoa criativa: se fez fogo por dentro da noite, por dentro da medo. No regresso do outro lado, velei o soldadinho morto, violetas e o meu silêncio todo ofereci à menina dos olhos tristes que nos esperava no cais. Por muitas geografias nos levou a tua voz, a palavra quase sempre rente ao povo que é onde começa tudo: a tristeza e a revolta.
Dádiva imaterial a tua, Adriano. Cheia de silêncio, cheia de memórias, cheia de Portugal. Procuro a tua a mágoa enquanto escrevo magnólia florida no mês de Março.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

[A insânia dos livros]

A palavra. Que estranha veação é a minha. A palavra. Porfio-a na folha das árvores, remota insânia dos livros sagrados. Acto venatório sem perdigueiro que adestre o silêncio, vedado ao ímpeto cruel dos furões. Inerme, procuro a palavra no rumor da brévia.

(in Brévia)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Segunda pessoa

Alguém diz tu. Alguém sem nome.
É a terra e o corpo e é o rasto de um sentido.
Alguém diz tu à imagem que se esgarça,
à certeza de uma longínqua razão.
Longe. O passado. Nomes, errados nomes de desejo.
Cego de insónia, nem lembrar te posso.
Nem mesmo em sonho saberia ver-te.
És só o pronome, tu, a ondular-me na boca,
norte magnético num desespero em surdina.
És a sílaba que dói a dor solar de um sentido.
A história avança na cabra-cega sem rostos,
e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.

Óscar Lopes


Óscar Lopes faz hoje (2 de Outubro) 90 anos. Nas noites de insónia escreve poemas, mas só o que aqui transcrevo, Segunda pessoa, foi publicado, há mais de duas décadas, na Ilha dos Amores, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Linguista, historiador da literatura, ensaísta, leitor apaixonado, Óscar Lopes deu a vida toda à "pobre gente, toda gente": a avó chorou de desgosto quando soube que ele era comunista. "E eu", contou um dia, "chorei, porque ela chorou".